quarta-feira, 24 de abril de 2013

A Igreja antes da Igreja - A. D. Sertillanges


I

Demos ao nosso primeiro estudo um título que não poderia convir a muitas instituições. Ele significa que a instituição religiosa de que falamos se precede de alguma sorte a si mesma; que, portanto, por alguma coisa de si mesma ela é superior ao tempo; que em todo caso lhe é igual; mas dá no mesmo; pois só é igual ao tempo, ao invés de se deixar talhar nele uma parte arbitrária, aquilo que se mostra superior ao que o tempo mede.

A história de toda instituição é como uma página branca tarjada de preto; precede-a o nascimento de si e outro nada segue-a; porque tudo morre. Só a Igreja não somente não morre, mas, em certo sentido, não nasceu; porquanto, se ela é uma realidade temporal, tendo uma história, é também uma realidade extratemporal, em razão de não passar a sua história de uma espécie de símbolo. Símbolo real, símbolo que é uma parte da sua realidade, mas que se acha transcendido por uma realidade mais alta, pertencente ao mundo do espírito e roçando pelo tempo apenas com a ponta das asas. Aliás, essas asas são tão largas de envergadura que envolvem todo o tempo, à feição do Espírito criador, de quem a Igreja é uma emanação direta.

Tal é a primeira noção a penetrar quando se quer falar corretamente dos antecedentes da Igreja.

É que, para o católico, a Igreja não é uma instituição particular, como haveria outras ao lado, antes ou depois: é uma instituição universal, que chama a si e que a si subordina realmente toda a raça, no intuito de, por Cristo, homem universal, uni-la a Deus que habita Cristo e que se fez homem n’Ele, a fim de que por Ele o homem suba e tenha acesso a Deus. Nestas poucas palavras, todo o pensamento católico se encerra. Ora, a raça de que Cristo é o chefe religioso e da qual, por Ele, o Espírito de Deus se torna a alma, a raça, digo, é todo o passado e todo o futuro, ao mesmo tempo que o presente.

A humanidade compõe-se de mortos tanto e mais do que de vivos, escreveu Augusto Comte: pela mesma razão compõe-se de homens nascituros tanto e mais – penso eu – do que de homens já nascidos ou desaparecidos. A humanidade é todo o desdobramento das gerações sobre a terra, como um eu individual é o desdobramento de uma vida em seus diversos estados. Era o que Pascal via ao escrever a sua fórmula célebre: “A humanidade é como um homem único, que subsiste sempre e aprende continuamente”.

Portanto, se a Igreja é a humanidade religiosamente organizada por meio desse Filho de Deus – Filho do Homem, que é Cristo, deve a Igreja ser necessariamente onitemporal. Poder-se-ia dizer que é eterna, considerando apenas o seu caráter divino: foi o que permitiu a João, o inspirado, dizer de Cristo, chefe da Igreja, que ele é antes que o mundo fosse nascido, ou seja, como Deus. Mas como homem, precisamente enquanto chefe da Igreja, S. Paulo di-lo-á não mais eterno, porém onitemporal, pertencente a todos os tempos: Ontem, hoje e em todos os séculos (Hebreus 13, 8).

Não que queiramos ressuscitar aquelas lendas rabínicas segundo as quais Cristo viveria de uma vida positiva, posto que invisível, através das gerações, por exemplo, como diziam alguns, no paraíso terreal, conservado e guardado pela espada de fogo do arcanjo contra a curiosidade dos geógrafos! Mas não são essas realidades materiais as únicas realidades.

Se sempre foi verdade dizer que nenhum homem chega a Deus senão por Cristo, que em Cristo a humanidade toda é oferecida a Deus, aceita por Deus e unida a Deus para uma vida eterna, bem necessário se torna que, de uma maneira ou de outra, Cristo tenha existido sempre, sempre à disposição de quem quer que, homem de ontem ou de hoje, daqui ou dacolá, procurasse o caminho para o Único Necessário e o Único Suficiente da alma humana.

Há uma gravitação universal das almas, e Cristo lhes é o Sol. Somente n’Ele está a grandeza, a inocência e a felicidade da terra. Religião viva, se assim posso falar, já que Ele se apresenta como o Vínculo, a Ponte, a Entrada, a Porta que faz comunicar e estabelece numa vida comum o homem e Deus, deve Ele dominar a raça na sua dupla extensão, espacial e temporal. De tão longe quanto venhamos sobre o imenso meridiano do universo moral, e qualquer que seja o momento do tempo em que situemos a nossa frágil existência, cumpre que, de uma maneira ou de outra, toquemos nesse ponto, para tocarmos no divino que lhe é parcialmente idêntico. Só aí a tangente infinita toca o círculo humano.

Toda a questão, para nós, está em definir sob que formas históricas essa vida espiritual, que Cristo preside e que é a vida da Igreja, pôde manifestar-se antes que a própria Igreja fosse deste mundo na sua forma presente.

Mas primeiro devemo-nos perguntar por que é que somos trazidos a esta complicação: a Igreja antes da Igreja, Cristo antes de Cristo, e a todas as consequências que daí decorrem.

Há aí uma questão de filosofia religiosa que muitos não percebem, mas que nem por isso deixa de existir, e cujo desconhecimento dá lugar a objeções variadas contra a teologia católica. Se Cristo é o ponto de partida e o meio único de todo o movimento religioso humano, por que é que, historicamente, ele não se acha no início da história humana? Aquilo que é definido como princípio deveria, ao que parece, fazer-se ver no principio. Natural seria que o Novo Adão, como nós chamamos a Jesus Cristo, o segundo primeiro homem, como diz o Padre Lagrange, fosse colocado no começo da vida universal, com toda a sua linhagem diante dele, como nosso chefe de raça temporal tem a sua linhagem diante de si.

Em lugar disso, somos levados a estabelecer o nosso sistema religioso sobre um duplo plano: um plano quase metafísico, segundo o qual Deus é situado em primeiro, depois Cristo, e finalmente todos os homens, seja qual for a sua época; e, doutra parte, um plano histórico, em virtude do qual Deus está, de fato, na dianteira, mas desta vez considerando como na ordem do tempo; em seguida, toda uma longa série de séculos ou mesmo de milênios, em que os homens viveram sem o Cristo histórico; depois Cristo; depois uma segunda série de gerações saídas dele.

Esses dois planos coexistem e não coincidem. Podemo-nos perguntar por quê. Mas a razão não é difícil de dar, e é pouco filosófico o motivo alegado em sentido contrário.

Um pai é obrigado a vir ao mundo antes do filho; mas um príncipe já não é obrigado a nascer antes dos súditos: podem estes preparar-lhe o reinado. Com maioria de razão um chefe espiritual, cuja ação utiliza a Divindade, senhora dos tempos, não tem ele necessidade de situar sua vida num momento antes que noutro? O homem poderá unir-se a Cristo futuro tanto quanto a Cristo passado, a Cristo desconhecido tanto como a Cristo conhecido. Antes de Lavoisier os homens viviam do oxigênio do ar e não o conheciam.

Chefe de raça espiritual, Cristo pode, pois, inserir sua vida temporal onde quer que seja, como o ponto de partida do círculo é não importa onde, e como o fazedor de carros que empurra uma roda imprime a ação, sobre o contorno desta, em qualquer das pinas, mas nem por isso deixa de acionar a roda toda. A roda dos séculos tem assim pinas sucessivas que são as diversas épocas; a ação de Cristo, exercendo-se sobre uma delas, animará todas as outras.

Verdade é que será com modalidades diferentes, e eu não pretendo que a presença real de Cristo, na sua vida histórica, seja desprovida de interesse religioso. Mas fica assente que a ação de Cristo, exercendo-se num certo ponto do tempo, poderá irradiar-se sobre todos os outros, e sobre cada um conforme a sua natureza própria. O passado não se comportará em relação a ele como o futuro, nem tal passado ou tal futuro como tal outro passado ou tal outro futuro; portanto a roda do tempo não é em toda parte idêntica a si mesma, como uma roda de veículo – nisto nossa comparação claudica; mas tudo estará, entretanto, sob a dependência dele.

Abstraindo por enquanto as diferenças particulares, dizemos: aparecendo Cristo no meio dos séculos – na plenitude dos tempos, como diz S. Paulo -, o passado liga-se a ele sob os auspícios da esperança, da espera, das preparações; o presente é a posse, e o futuro, volvendo-se para ele, tomará uma atitude inversa, ligando-se a ele pela lembrança, pelos desenvolvimentos da sua obra, pelo progresso. Cristo é assim todo de todos, posto que sob modos diversos.

Resta saber por que essa organização. Mas este porquê é de uma simplicidade que só uma ignorância absoluta do que é a vida religiosa pode desconhecer.

Há quem imagine que a religião é toda divina, vinda do alto para nós que a recebemos, sem condição de reciprocidade, pelo menos inicial. Se ela é assim um puro benefício, não se vê bem por que não é logo concedida por um Deus bom, por um Deus que não faz acepção nem de pessoas nem de épocas. Mas isto é raciocinar como crianças.

A religião não é um dom unilateral; é uma permuta; é uma relação do homem com Deus. E, seguramente, nessa relação é Deus quem começa; mas, já que o homem deve seguir, cumpre que a iniciativa de Deus se submeta às condições naturais da vida humana, que implicam desenvolvimento e, por conseguinte, antecedentes, concomitantes e consequentes; preparação, posse e utilização; começo, meio e fim. Esta trindade é inevitável, resultado da natureza profunda de tudo o que nasce no tempo, visto ser da natureza do tempo comportar o passado, o presente e o futuro.

São Tomás repetidas vezes explicou quais as razões de psicologia individual e social que se opunham aqui à confusão das datas, se assim posso dizer, de um Cristo a preceder os antecedentes de Cristo, de uma lei evangélica não preparada por uma lei judaica, e de uma lei judaica coincidente com uma lei natural do inicio dos tempos. Não entramos neste detalhe; porém sustentamos que a nossa Igreja eterna, que se compõe de três elementos: Deus, o homem, encarado na sua unidade onitemporal, e o Homem-Deus como vínculo, deve escalonar as suas manifestações conforme as divisões essenciais da duração humana. Haverá primeiro as preparações, as antecipações da Igreja. Haverá o fato central, constituído pela vinda de Cristo que, trazendo a Deus em si e representando o homem chegado ao posto desejado para inaugurar uma obra religiosa perfeita, iniciará o trabalho propriamente dito da Igreja. Haverá, enfim, o desenvolvimento, o progresso de uma obra destinada a transformar o mundo. Será aqui a história da Igreja no sentido próprio, embora historiadores tais como Rohrbacher, vindo ao encontro do pensamento que eu exprimo, façam remontar seus relatos até a Adão e mesmo – conforme em breve explicarei – até ao dealbar do mundo.


Eis aqui, pois, justificado e explicado já por uma parte o nosso título: A Igreja antes da Igreja. Cumpre, porém, precisar.

Partindo do fato de representar a vinda de Cristo, para o cristianismo, um episódio central e não um inicio, há razão de nos perguntarmos que condições se impõem a cada um dos dramas desta trilogia: as preparações da Igreja, o nascimento da Igreja, o desenvolvimento da Igreja.

Os dois últimos atos não nos interessam neste momento; resta, porém, o primeiro, e, para encará-lo nitidamente, proponho um exemplo tanto mais próprio para esclarecer o nosso caso quanto, de certa maneira, faz parte dele.

Todos nós, cristãos ou simplesmente filósofos espiritualistas, dizemos que a criatura pensante é neste mundo a razão de ser de todo o trabalho da natureza. Tudo é para os eleitos, diz S. Paulo. A humanidade é um fim em si, dirá Kant, ou, noutros termos, a coisa subordina-se à pessoa. Sabe-se que Bergson, na sua recente obra As duas Fontes da Moral e da Religião, retomou à sua conta esta tese.

Justamente por causa dessa finalidade, e em razão da nossa observação de há pouco, o homem não aparece no inicio, mas deve ser preparado. Como? Primeira mente sob uma forma remota, pelo estabelecimento do seu meio, pela elaboração das substâncias que devem assimilar-se à sua vida, pela organização das forças que ele terá de utilizar e de que a sua vida será, por um lado, a resultante, e, por outro, a conquista. Como serão precisos séculos para este trabalho! Começamos a suspeitá-lo; mas só poderíamos admirar-nos disto desconhecendo a desproporção quase infinita do espírito para a matéria.

Em seguida, a título intermediário entre o trabalho cósmico e a humanidade constituída, são necessários os lentos progressos das espécies inferiores, a cera viva de onde jorrará um dia a flama do espírito. E esse jorramento não se dará sem uma intervenção especial do Criador; será como que um lampejo novo da Fonte luminosa imanente a este mundo enquanto ele contém Deus; mas essa obra última nem por isso estará menos implicada numa série de que ela será o último termo, mormente se, a coisa permitida pela fé tanto como pela ciência, admitirmos que o corpo do homem foi preparado pela vida antropoide.

Apliquemos o nosso exemplo, e, ao invés da humanidade em relação ao globo e a tudo o que ele encerra, encaremos a Igreja em relação à humanidade. É o mesmo caso prolongado, e a lei de desenvolvimento será a mesma.

Diremos primeiro, e desta vez em sentido nitidamente religioso, e não somente espiritualista: Tudo é para os eleito, isto é: Cristo, e o grupo de Cristo, a Igreja, é a finalidade de toda a história. Nada se agita no mundo senão para promover o reinado dos fins espirituais da humanidade, que é o trabalho próprio da Igreja. O Discurso sobre a História universal, a despeito de certas fraquezas inevitáveis a quem se propõe seguir assim os vestígios da Providência, é, no fundo, não somente magnífico como a eloquência de Bousset, mas inatacável. Ele não faz senão desenvolver esta antiga afirmação do Pastor de Hermas (século II): “A Igreja foi fundada antes de todas as coisas, e para ela é que o mundo foi feito”.

Ora, se é verdade que os fins últimos devem governar desde o começo, deve-se dizer, como já o fizemos, que o trabalho relativo à Igreja, e mesmo o trabalho da Igreja, remonta às origens do nosso mundo, e do mundo em geral, por que tudo se liga em Deus e porque a preparação do meio natural do homem faz parte da produção do homem.

Por esta razão é que o nosso livro religioso, a Bíblia, se abre por um relato da criação: No princípio, criou Deus o céu e a terra¸ como também a genealogia de Cristo remonta até Adão e até Deus: Qui fuit Dei. Sem isso, o plano religioso do mundo não seria completo ao sentido do passado, do mesmo modo que, se não tivéssemos os apocalipses e os relatos da parusia, o plano religioso do mundo não seria completo em face do futuro.

Num sentido como no outro, é preciso ir até o limite do criado e até o limiar de Deus, se assim posso dizer, de tal sorte que Deus, tocado como Providência ao longo de toda a curva do tempo, seja tocado também, como iniciador e como fim, nas extremidades dessa curva, à partida e à chegada do impulso universa.

Não quer isto dizer que os nossos livros sagrados ou os nossos pensamentos religiosos devam preocupar-se com escrever a história total ou com profetizar o futuro total. A sequência dos tempos religiosos não precisa ser completa. Não precisa mesmo ser exata do ponto de vista científico. O seu sentido religioso é que precisa ser exato, e isso requer apenas uma historicidade relativa, feita de símbolos reais, isto é, de notações simplificadas, esquemáticas; sacrificando o detalhe à visão de conjunto, pulando períodos inteiros como a série dos patriarcas na Bíblia, correndo ao fim, que é manifestar o sentido da vida.

Em razão do que, ver-se-á a cosmogonia bíblica situar-se numa região mais ou menos alheia à ciência, a história bíblica só parcialmente satisfazer a ciência, e a profecia bíblica proceder como por saltos, sem grande preocupação das perspectivas. O que, aqui entre parênteses, explica como, sem nenhum erro propriamente religioso, podem os primeiros cristãos crer no fim iminente do mundo. Eles têm na mente o que nós descrevemos: ontem Adão, hoje Cristo, amanhã reintegração do mundo e Deus; simplificam, e a intensidade com que vivem essa simplificação faz-lhes parecer mui próximos os elementos dela.

A respeito do passado, são eles ainda defendidos pela história, que não se deixa estreitar indefinidamente. Eles a estreitam muito! Mas, a respeito do futuro, não sendo retidos por coisa alguma, e colocando-se-lhes, por assim dizer, aos olhos a sua visão ardente, eles esperam a realização do plano num espaço proporcionado a uma vida de homem. É um erro; mas não é um erro religioso. Eles enredam o fio dos acontecimentos com a ordem histórica das datas de cumprimento: confusão religiosamente sem importância. S. Pedro dirá a palavra da situação observando que, a respeito de um plano religioso universal, em que os acontecimentos têm lugares teóricos mais do que propriamente temporais, mil anos são como um dia e um dia como mil anos. Esta reflexão de uma filosofia profunda.


Tal é, pois, a primeira face da nossa comparação. A história da Igreja começa, no mínimo, nas origens da humanidade, como a história da humanidade começa, no mínimo, nas origens do nosso mundo.

Digo agora que as fases das preparações serão as mesmas. Haverá preparações indiretas, conscientes em trabalhar o gênero humano, como as forças cósmicas trabalharam o globo, de tal sorte que, quando a verdadeira religião nele nascer, ache meios de fazer sua vida, assimilando todo o humano que pode favorecer-lhe a obra. Haverá em seguida – ou paralelamente, visto se tratar aqui menos de dividir durações do que de alinhar coisas – haverá, digo, preparações remotas ainda, porém mais diretas, nisto que serão religiosas, do mesmo modo que, sendo a ordem vital, o desenvolvimento da flora e da fauna terrestres preparava remotamente, mas de certo modo diretamente, o homem. E, assim, diremos que as religiões antigas anteriores ou exteriores à obra de Abraão preparavam o Evangelho.

Enfim, do mesmo modo que, quer lógica quer realmente, conforme as hipóteses, o antropoide preparava a vida do homem à terra, desta vez a título imediato, assim também o judaísmo de Abraão a Jesus, preparou Jesus e sua Igreja.

Vê-se o que há diante de nós em matéria de história. Naturalmente feriremos este assunto apenas rapidamente.

II

Não insistirei sobre as preparações remotas da Igreja que consistiam em plasmar o meio humano por um trabalho de civilização geral, introduzindo elementos de ciência, experiência, de moralidade, de direito, de arte, de poesia, etc., onde quer que a religião, que utiliza todas essas coisas, pudesse um dia encontrá-las. Não devemos insistir nisso, já que, em si mesmas, essas preparações são estranhas à ordem religiosa. São-lhe, no entanto, preciosas infinitamente como todos os nossos grandes homens têm sabido reconhecê-lo.

Os apologistas antigos, tais como Justino, Teófilo, Origenes, Basílio, Gregório de Nazianzo, Crisóstomo, Agostinho, viam nos antigos sábios os análogos seculares dos profetas, isto é, prefaciadores do Evangelho, como se disse em particular de Platão. Em Sócrates ou em Heráclito, essas vítimas da verdade, ousavam eles ver os análogos de Cristo crucificado, quer dizer, mártires antecipados da ideia cristã preparada de longe pelas suas concepções geniais. Tudo o que de bom houve no paganismo era, para esses Padres, obra do Verbo, que se difundia por toda parte antes de se concentrar em Jesus.

Isso era confessar que as civilizações antigas e todo o trabalho humano na terra foram para o judeu-cristianismo uma espécie de plasma germinativo, de meio nutriente que, primeiramente, o preparava; que, em seguida, o serviria, como a química do globo, que, depois de preparar o homem, continua a servir à subsistência e às invenções deste; com a vida animal, que o preparou mais de perto, mais de perto também o serve para sua alimentação, vestuário, transporte, regalo e tantos outros usos.

É o que se deve ver na palavra de S. Paulo: Omnia vestra sunt. Todas as coisas vos pertencem como preparadas providencialmente para vos servirem, a vós filhos de Cristo e irmãos na sua lei, não tendo todo o movimento do mundo outra finalidade senão a realização dos fins superiores que são os fins da Igreja.

Isso é simplíssimo: inútil é repisá-lo, e teremos aliás de voltar a esse ponto dizendo de que maneira se fez a utilização do passado pelo cristianismo¹. Porém o que mais delicado é de justificar é o que dissemos em segundo lugar, a saber: que as religiões antigas preparavam, a seu modo, a Igreja e o trabalho da Igreja.

Muitas vezes, tem-se uma ideia inteiramente oposta. Isto se concebe: porquanto já não se trata aqui de uma matéria a utilizar, porém de uma utilização já adquirida, defeituosa, e que, como parece, para um operário ulterior não pode ser senão um estorvo. Fazer uma boa estátua com um bloco, é normal; mas fazer uma boa estátua com uma má estátua já desbastada, para isto é preciso ser um Miguel Ângelo. O autor do David de Florença faz desses prodígios; mas estes não se repetem muitas vezes, mesmo na sua própria história.

Por isso é que os primeiros cristãos foram tão duros para as religiões estranhas; bem longe de as chamarem providenciais, chamavam-nas demoníacas, e, do seu ponto de vista, tinham razão. Mas, tratando-se um juízo de conjunto, não nos devemos deixar cegar por um ponto de vista, por mais justo e mais importante que seja na sua categoria. Demoníaco e providencia, isto não se opõe tanto como se poderia pensar. O demônio também é providencial; só age segundo a extensão da sua cadeia, e isso mesmo que ele faz pode entrar e entra na grande corrente que Deus dirige.

No cristianismo, sempre temos dito que uma religião qualquer é preferível à ausência de religião. É que, portanto, uma religião qualquer tem valor em relação à nossa, e pode servir-lhe de preparação. Verdade é que é com a condição de morrer, como uma espécie que se transmuda noutra, como um vivente que nutre um vivente superior.

Quando o passado fica aberto no sentido do futuro, prepara-o; quando pretende fechar-se e resistir à absorção, neutraliza-se, e é nisto que se torna demoníaco; porquanto, resistindo ao bem, trabalha para o mal. Com a maioria de razão o será se, à sua imperfeição que deveria fazer-lhe ceder o lugar, se misturam elementos perversos que exigem uma reforma.

É o caso das religiões antigas. O que elas têm de demoníaco é a corrupção de certas crenças e de certos ritos impostos aos seus adeptos; é, depois, a sua pretensão de reger definitivamente por sua própria autoridade a alma humana. Mas nem por isso é menos certo que elas permanecem úteis, e que, aos olhos da Providência, são etapas. Por mais que recusem deixar-se sobrepujar, o que elas recusam Deus saberá fazê-lo, e, completada a obra de Deus, poderemos, como S. Paulo, volver-nos para esse passado de imperfeições e de taras, para reconhecer nele, a despeito de tudo, o si forte allreetent eum: a procura a que Deus devia corresponder, por conseguinte uma real preparação.


Digamo-lo, pois, sem hesitar: as próprias religiões falsas foram, no passado, abrigos provisórios para os diversos rebanhos de Cristo disseminados pela superfície do globo. Havia rebanhos de Cristo; havia ovelhas isoladas espalhadas por toda a estrada dos séculos, a saber: os que pertenciam à Igreja interior de que falamos, a isso a que se costuma chamar agora a alma da Igreja. Onde estavam esses pastos, qual era o alimento deles, senão, interiormente, a graça, que a ninguém é recusada, mas também, exteriormente, tudo o que à graça podia servir de preparação e de meio?

Está bem entendido que os ritos pagãos não conferiam a graça por si mesmos; a ela não conduziam por instituição; afastavam dela quando tendiam a perverter os costumes; mas podiam também ocasioná-la, e isso por uma vontade providencial? Como? Primeiramente pelas disposições interiores que eles favoreciam, de fora, como o símbolo favorece a realidade, a palavra o pensamento, o sacrifício o amor. Em segundo lugar, pela solidariedade de sentimentos dos sacerdotes e dos fiéis unidos. Toda associação é criadora, em relação àquilo que vos congrega. As águas lustrais, os sacrifícios expiatórios, os ritos sublimes da agnação, os panateneus gregos, as cerimônias matrimoniais ou funerárias, tudo isso era ou em todo caso podia vir a ser um precioso agente de reforma moral, de misticismo interior, e assim um meio de salvação.

Não é evidente que tais grupos religiosos da antiguidade pagã representavam, como ainda representam, a despeito da sua desastrosa insuficiência, aspectos mui preciosos da verdade religiosa? Negando tão energicamente a vida ilusória que é a natureza sem Deus, e voltando-se para o absoluto, não oferecia o budismo uma das metades imensas da verdade? A infelicidade é que uma só metade de nada serve, para a utilização imediata, se estiver ausente a sua metade complementar. Voltado para o absoluto, o budismo não soube defini-lo senão pelo nada, e tornou-se assim uma religião de nada, um esforço puramente negativo, por consequência perversor, pelo fato de ser visto como um todo. Uma metade de roda que faz a roda, joga o veículo no chão.

Sempre se pode dizer que, uma vez absorvido na verdade integral, o ponto de vista do budismo se tornaria vivificante, do mesmo modo que é bebido nos nossos místicos. O formidável não que esse desprezador dirigia ao mundo serviria de relevo ao inefável sim evangélico, e, a olhar as coisas com vistas largas, no próprio plano da Providência, não seria sem importância para a história humana que isso houvesse existido.

Outro exemplo bem diferente: o helenismo. Esta alta civilização atingiu por instantes a verdade absoluta, desta vez na sua forma positiva. O Deus de Platão ou de Aristóteles não está muito longe do nosso Deus; para reduzi-lo completamente a ele, basta harmonizá-lo consigo mesmo. Qual foi o erro do helenismo? Antes de tudo foi permanecer uma pura teoria. Ele só se realizou sob as espécies da beleza, e ainda assim de uma beleza amada até o vício, escreveu Taine, prova de que o equilíbrio moral, que deveria ter correspondido ao equilíbrio relativo do pensamento, permaneceu sempre instável. O ideal foi concebido e permaneceu impotente. O Verbo de Deus irradiava, e refletia-se em pântanos, em vez de descer a eles, humilde e sublime, com o Viandante evangélico, a fim de purificá-los.

Isso não impede a filosofia grega de se mostrar, providencialmente, um dos antecedentes mais preciosos do pensamento cristão, e, quando este aparece, um dos seus maiores recursos. Nós ainda vivemos dela, e humanamente pode-se dizer que o cristianismo não seria o que é se os Gregos não houvessem existido.

Assim, alternativamente, poder-se-ia louvar com louvor parcial cada uma das formas religiosas que o mundo viu aparecer fora do cristianismo. Até nas religiões mais rudimentares, e provavelmente mesmo na mais antiga, existe o culto da família, com um valor já muito alto. Sentir a Deus no lar, ainda quando para isso se houvesse humanizado esse Deus fora de toda medida, é realmente alguma coisa. Bastará ampliar o pensamento para que o lar universal presidido por Deus Padre, tendo por irmão mais velho Cristo e por inspirador o Espírito Santo, se torne precisamente a Igreja.

A certos respeitos, esse culto doméstico, tão estreito, valia mais do que os alargamentos pretendidos dos cultos nacionais; porque estes acabavam na política, ao passo que o culto doméstico permanecia intimo, o que constitui um dos caracteres essenciais da religião. Sob este ponto de vista, os extremos se tocam; o universal e o intimo vêm a juntar-se, porque, se o Deus dos Romanos só aos Romanos interessa, o Deus universal interessa a cada homem, e lhe interessa a título íntimo, visto como a universalidade absoluta implica a imanência.

Seja lá como for, digo que em graus diversos todas as formas religiosas do passado colaboravam para o progresso da alma humana. Neste sentido, alguém pôde dizer que não há religiões falsas, que há apenas religiões imperfeita: maneira imprópria de se exprimir; porque essas religiões, inconscientes da sua obra e daquilo que a Providência demandava nelas, afundavam-se num particularismo atrofiante e corruptor. De sorte que, se seus grupos eram como que Igreja antecipadas, eram entretanto Igrejas “a latere”, abrigos de ocasião, na grande tempestade moral que agitava o mundo. Se havia nisso coisa melhor do que nada, não havia a tal coisa que, provisória ainda, mas definida e nitidamente orientada, já não terá senão que seguir adiante, para desabrochar em perfeição quando soar a hora divina.

De onde virá a grande corrente de que a nossa Igreja será o desfecho natural?

Natural! Natural não poderá sê-lo verdadeiramente; porque o fato decisivo que dará nascimento à Igreja, como o fato que cria o homem infundindo uma alma numa matéria, deverá ser um fato transcendente. Mas, num caso como noutro, o fato criador vem inserir-se numa série de fatos em continuidade natural com todas as preparações anteriores.

Para encontrar a primeira fonte de onde, à sua hora, sairá o rio cristão, cumpre remontar àquele momento decisivo, posto que muito humilde, em que o “scheik” Abraão, avisado misteriosamente e um desígnio de Deus sobre ele, de uma missão secular para a sua posteridade – que ele vê, em sonho, semelhante às areias de ouro que pontilham as praças do céu – deixa de repente a sua terra Caldeia à frente de um bando de quinhentos ou seiscentos homens, tomados entre os fiéis de Javé.

As razões dessa fuga são religiosas. A tribo semítica a que Abraão pertence não é estranha ao verdadeiro Deus, visto como ele mesmo professa e representa o culto desse Deus; mas nesse momento ela incide no culto dos Terafins, ou penates, e noutras superstições grosseiras. Nessa mistura confusa que cedo teria absorvido o melhor no pior, uma escolha providencial é feita; Abraão é o meio para isto. Ele parte. Vai abrigar a chamazinha pura na terra isolada de Canaã. A sua religião pessoal fixará o futuro religioso de Israel, e, por este, o futuro religioso do mundo. Ele será o verdadeiro pai dos crentes, e sua fuga será como que a decisio seminis, o desprendimento do germe, em relação ao meio paterno, para uma revolução ulterior.

Reconhecer-se-á aqui o último termo da assimilação de que quisemos partir para contar as etapas da preparação da nossa Igreja?

A religião de Israel, em relação à nossa fé, é o antropoide em relação ao homem. Eu dizia inda há pouco: é o embrião antes do desabrochar da alma; mas as duas comparações vêm a juntar-se, se é verdade que as fases da embriogenia reproduzem em grosso, ou em todo caso simbolizam, as fases da evolução da raça.

O que falta ao embrião israelita é a alma cristã, que nele será infundida quando o Espírito descer, socializando o dom pessoal da divindade feito a Jesus, e realizando assim na sua perfeição inicial a vida religiosa autêntica. Mas a preparação é imediata. Israel é um corpo religioso apto ao sopro do alto. O que lhe falta à vida espiritual, ele é capaz de recebê-lo, diferentemente das religiões rígidas ou desviadas, refratárias às reformas.

Não é que os desvios tenham sido estranhos àquele povo, que só parece ser o eleito a contragosto; povo de cabeça dura, ou de pescoço teso, como diziam os seus profetas. Mas esses desvios nunca foram senão os meandros da corrente que aparentemente reflui, mas que nem por isso deixa de descer o vale, arrastada por uma lei imperiosa.

Constantemente infiel, Israel constantemente se corrige, é corrigido. Javé o guarda, mesmo quando ele se esquece de guardar Javé. Ele pensa sepultar o seu Deus no politeísmo ambiente: Deus ressuscita. E esse Deus tem caracteres que não permitem confundi-lo com as falsas divindades populares nem com o Deus abstrato dos filósofos. Contra as divindades dos pagãos, ele tem a sua unidade e o seu caráter moral. Contra o Deus dos filósofos, teu o seu caráter vivo e criador.

Uno e moral Ele o é pela própria posição que ocupa, se assim posso dizer. Salvo raras exceções, a antiguidade parece ter sido dominada pelo pensamento de que os deuses são emanações mais elevadas do que o homem, porém emanações, todavia, da grande natureza universal. “Uma coisa é a raça humana, dizia Pindaro, outra é a raça divina; mas uma mesma mãe as deu à luz a ambas”.

Nestas condições, o egoísmo humano, cuja satisfação depende pretensamente dos deuses, pode sempre esperar corrompê-los ou dominá-los – corrompê-los, visto terem eles também necessidades e desejos; dominá-los, visto serem envolvidos por influências superiores, Destino ou Natureza, às quais o homem poderá dirigir-se para impor sua lei aos acontecimentos fora do esforço virtuoso.

A magia, que é universal na antiguidade, salvo em Israel – digo o Israel autêntico -, é a consequência desse estado de espírito. Com uma fórmula mágica, o homem julga-se apto a dominar a própria divindade, como com um touro de sangue rico acredita fartá-la até a embriaguez que não mais lhe pesará os dons.

O Deus de Israel, este dirá: “Acaso eu como a carne dos touros? Bebo o sangue dos bodes? Se eu tivesse fome, não to diria, pois meu é o mundo e tudo o que ele encerra... Imaginaste que me parecia contigo... mas olha: àquele que vela sobre o seu caminho, a esse eu farei ver a salvação de Deus” (Ps. XLIX).

Assim, uma só coisa agrada a Javé e uma só coisa pode vencer Javé: a obediência à lei do bem, que é a sua própria lei e o seu único amor, pois ele é o Bem vivo. Quem faz o bem vê vir a si, ainda quando fosse pelo escuro caminho entrevisto por Jó, a felicidade, flor do bem, o objeto das pesquisas que o homem só empreendeu a convite do ideal, e que o Ideal vivo quer satisfazer.

Essas perspectivas, certamente ocultas aos olhares de muitos em Israel, nem por isso deixam de ser o fundo da alma religiosa desse povo. Donde a sua superioridade moral – relativa, evidentemente, porém incontestável – em relação às raças pagãs, e tanto mais notável quanto não se pode atribuí-la à sua civilização. Lede o código de Hamurabi; que data de uns seiscentos anos antes da lei de Moisés, e achareis nele o cunho de uma sociedade muito mais policiada, muito mais sábia. Ora, com o politeísmo, aceita ela a magia e a imoralidade que as leis judaicas claramente proíbem.

E eu dizia que o Deus de Israel não está menos distanciado dos deuses abstratos do que dos deuses mendigos ou mágicos. É um louvor cujo alcance muitos não compreendem, movidos como são por um intelectualismo inimigo da vida humana. “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”, dizia pascal, “e não Deus dos filósofos e dos sábios”.

É que, se os deuses populares estão em baixo, na terra, o Deus dos filósofos está no ar, o que não quer dizer no alto. Não está em parte alguma, a não ser na fórmula do mundo. E de que serve, para a vida, o Primeiro Motor, de Aristóteles, ou o Pai das Ideias, de Platão, ou o xioma Eterno, de Taine? O Deus dos Judeus é um vivente. É transcendente a tudo, e a tudo é imanente. Muito alto e muito próximo, a sua figura tem uma ingenuidade popular tão impressionante como a sua sublimidade.

Ele fala no meio da tempestade, porque é o Deus da natureza. Fala por Moisés ao seu povo, porque é o Deus da história. Fala à consciência de cada um, porque é o Deus do bem. E com isto não é nem um Deus naturalista, como os Baals, nem um Deus nacional, como as divindades do Império, nem o dáimon de Sócrates. É o Deus do infinito, o Deus do coração e o Deus da história universal. É simplesmente Deus, e manifesta por si só a transcendência da revelação mosaica.

Os que verdadeiramente vivem dele estão preparados para o Evangelho, adorando “o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo”, como observa profundamente São Tomás de Aquino. Por isso os livros deles, e em particular as suas coletâneas de orações, textos religiosos por excelência, ainda estão em uso edificante entre nós. Os salmos são o fundamento da nossa liturgia. Neles se acha a mais alta poesia unida à vida interior mais intensa. Os nossos meios de edificação pelo exemplo são inaugurados de maneira a mais frisante pelas admiráveis lições morais trazidas pelos livros de Jó, ou de Tobias, pela história de Betsabé e de Davi, de Suzana, dos três Hebreus na fornalha, etc.

Quanto o culto, este se eleva em Israel até à instituição prefigurativa, ao invés dos reflexos esparsos produzidos pelo espelho quebrado dos cultos pagãos. Ora, na prefiguração, o futuro prefigurado já se acha incluso de certo modo. Sabem-no os nossos artistas que representam em série contínua, na unidade de concepção de arte que manifesta a unidade de concepção religiosa, as cenas do Antigo e do Novo Testamento².

Poder-se-á dizer que essas aproximações se fazem tardiamente, e há alguma coisa a reter desta observação; mas nem por isso o conjunto do culto hebraico deixa de andar na perspectiva do nosso. É o imperfeito que se orienta para o perfeito e que pertence ao mesmo gênero, diriam os filósofos. É a aurora, que pertence ao dia. O paganismo, digo o paganismo piedoso, é a escura claridade das noites, quando o peso das nuvens ou o peso voluntário do sono não a escurecem para os nossos olhos.

Unindo os dois, ter-se-á o ciclo completo das iluminações que preparam as claridades diurnas. Tudo o que mais tarde poderá vir a ser cristão por incorporação, em toda a amplitude do mundo antigo já é cristão por antecipação. A nossa Igreja católica, isto é, universal, mostra-se assim deveras universal, reunindo a amplitude dos tempos sob o imenso amplexo do seu desenvolvimento multiforme. Aquele que é revela-se, na sua Igreja, ao mesmo tempo Aquele que foi e Aquele que será.


E o que mais do que tudo manifesta esse caráter a um tempo envolvente e desenvolvedor, tradicional e progressista, numa palavra, eterno no curso do tempo, é o profetismo. Nele está a atadura do feixe. O profetismo na sua dupla forma, interprete do passado e precursor do futuro, é como a ponte que liga espiritualmente as diversas idades do mundo, que faz a antiguidade, remota ou próxima, comunicar com as esperanças, imediatas ou longínquas, que o grande movimento religioso que domina os tempos quer realizar. Eu já disse que o profetismo, no sentido lato do termo, não esteve ausente do próprio paganismo. Reconheceram isso os nossos Padres da Igreja. Mas, no sentido próprio, a profecia, que se antecipa à vida da Igreja e lhe dá como que uma duração retroativa, é apanágio de Israel.

Pelos seus gritos inflamados e pelos lampejos às vezes fulgurantes do seu pensamento religioso, os profetas de Israel transcendem a duração como transcendem o seu meio imediato. Atingem a eternidade e a imensidade onde o Evangelho entender de se colocar. Eles falam ao Homem, o Homem de todos os tempos e de todas as raças. São os sacerdotes da instituição religiosa universal, e, quando eles jazem no fundo do passado, olhando para o futuro, as suas esperanças traçam o caminho que tornarão a subir mais tarde as lembranças, nos interpretes inspirados da história.

Essas duas correntes de visões e de apelos são como que as grandes linhas que atravessam todo o teclado, num sentido ou noutro. Por causa disso, achareis nos profetas um esboço de dogmática, de moral e de culto espiritual muito superior ao que servia de base às instituições regulares do povo. A vida religiosa do seu tempo, que é neles o seu máximo, neles se excede a si mesma por um empréstimo antecipado tomado ao Evangelho. E é assim que eles são um nexo real, do mesmo modo que suas profecias são um nexo verbal, entre a antiga e a nova Aliança.

O reino de Deus que eles preconizam tem por sede as consciências, e o reino de Javé sobre Jerusalém não passa, por assim dizer, de um símbolo desse reino. Para eles Jerusalém é antes de tudo a pátria das almas. A vida interior, que será a essência do cristianismo, assume aos olhos deles uma importância primária; eles se incomodam menos com as sanções temporais, cientificadas de promessas que sentem obscuramente, mas que, de fato, são as do Evangelho.

O universalismo politicamente tão estranho a Israel, introduz-se praticamente neles com a ideia da vocação dos gentios e do acesso das “Ilhas” (como eles chamam às nações dispersas de longe) ao território religioso de Israel.

Essa Ilhas longínquas, quer dizer, o universo, aparecem ao olhar profético, para quem as perspectivas da história judaica e da história universal se confundem, como dependências da pequena Palestina onde eles bradam as suas esperanças. E esse juízo não é vão, visto como o futuro depende do passado que o prepara, visto como a joia, mesmo de valor incomparável em relação à cadeia, nem por isso deixa de estar suspensa à cadeia. Israel é a cadeia da joia evangélica; o profetismo é a pérola de espera inserida entre os elos.

Vozes do universo extraviadas num recanto do universo, vozes do infinito dos tempos localizadas num ponto dos tempos, os profetas pressagiam e preparam a grande voz que dirá:  Eu é que sou a Luz do mundo. Eu sou o Caminho; sou a Verdade; sou a Vida. Sou a Porta por onde devem passar todas as ovelhas humanas para irem aos pastos divinos.

Eis que avança, no limiar dos tempos novos, aquele que, último dos profetas e primeiro dos cristãos – João, o Batista – será o liame vivo entre os dois mundos. “Preparai, clamará ele, o caminho o Senhor, tornai retas as suas veredas”. Era o que o seu grupo religioso tinha feito; era o em que haviam colaborado remotamente todos os outros.

E chegado era o momento em que na sinagoga estreita, como no coração tenso e impotente dos homens, o futuro do mundo sufocava; mas ele aí achara até então um abrigo, e, sem abalo exaustivo, não sem crise entretanto – pois todo nascimento é uma crise -, ia passar do período das longas gestações para o período das manifestações, aguardando a era dos progressos indefinidos que só a eternidade deve encerrar.

Havendo-lhe todo o passado trançado assim o berço, havendo-lhe, ai! Talhado a cruz, mas também havendo recolhido raios de luz para a sua auréola, Aquele que devia vir podia vir.

1- Cf. infra, Cap. V.
2- Em Chartres, quatro vitrais apresentam a mesma ideia de maneira mais audaciosa, mostrando, cada um, um evangelista empoleirado nos ombros de um profeta.


- Retirado do livro "O Milagre da Igreja" de A. D. Sertillanges

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