terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A superioridade de Cristo

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Censuram com frequência a cristologia católica tradicional, dizendo que há um elemento irreal no Cristo da teologia clássica. O Jesus dos Evangelhos e da piedade católica (dizem os adversários) é representado como tendo dado uma terrível batalha moral, sofrendo e morrendo; mas tendo absoluta certeza de que o final da luta seria esplêndido, além de toda a compreensão, e que nenhum poder do mundo poderia impedir ou retardar o triunfo da sua Pessoa e da sua causa. Nenhum herói – dizem – foi tão privilegiado. Era preciso que ele se lançasse no combate sem ter recebido a certeza do triunfo final. Não é verdade que o heroísmo puramente humano parece mais verdadeiro pela carência dessa visão certa de vitória?

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Temos, pois, que defender a doutrina das certezas de Cristo, não só contra os racionalistas, mas também contra devotos bem intencionados. Cristo teria sido menos digno de amor se não tivesse certeza da sua vitória final. Toda espécie de dúvida, de receio, tê-lo-ia tornado menos atraente para a contemplação cristã. Não teria sido, finalmente, um herói. O que devemos, no entanto, conceder é que esta certeza de Cristo, no momento mesmo do triunfo dos seus inimigos, encerra um maravilhoso e excepcional problema: É esta a vossa hora, e do poder das trevas (S. Lc XXII, 53).

Temo aqui, verdadeiramente, um fenômeno mental único, e podemos dizer sem exagero que toda a mentalidade do cristianismo depende desta questão: se Cristo nas suas humilhações teve ou não teve completa e inabalável certeza da glória que lhe estava destinada. Pois, se Jesus teve tal certeza, é evidente que os males que o acabrunhavam eram, essencialmente, passageiros; portanto, não foram forças terríveis, e sim provações. A conclusão que os cristãos de todos os tempos devem tirar disto é que, reconhecendo passageiras as aflições da vida presente, devem suportá-las sem o medo e terror que inspira um mal sem fim.

Nosso Senhor teve plena certeza de que nada lhe podia, afinal, causar dano. Sentia-se, pelas leis e riquezas vitais da sua admirável Personalidade, imune dos ataques de seus inimigos: Porque vem o príncipe deste mundo, e ele não tem em mim coisa alguma (S. João, XIV, 30). O Filho de Deus possuía o senso perfeito das proporções, o qual lhe permitia apreciar os males da vida presente no seu justo valor. Se o qualificativo de filósofo pode aplicar-se, com razão, àquele que se não deixa dominar intelectualmente pelas misérias deste mundo, Cristo deve ser proclamado o filósofo por excelência. Tudo nele o faz superior à tirania que o sofrimento e a morte exercem sobre a imaginação humana e fazem que esses males terríveis apareçam como verdadeiros senhores do nosso destino. Entretanto, havia em Cristo mais do que a simples superioridade de conhecimento: tinha o poder de vencer e abater todos esses monstros sinistros.

Devemos absolutamente admitir como única doutrina ortodoxa que Cristo foi em todo o tempo senhor incontestável da morte e de tudo o que se relaciona com a morte. Tanto os males físicos como a malícia dos homens eram impotentes contra ele, desde que ele quisesse mostrar a sua superioridade.

O encanto desse herói, Cristo Senhor Nosso, está em que ele se submeteu a esses males para o bem dos que viera remir, afim de lhes mostrar que esses males não podem realmente ferir o que é essencial no homem. Tomou-os sobre si mesmo com a intensão expressa – diz S. Paulo – de destruir o terror que nos causa a morte, e de tirar a Satanás, que tiraniza o homem com esse especto lúgubre, a sua arma mais poderosa que é o caráter aparentemente irrevogável da morte: Por isso, visto que os filhos participam da carne e do sangue, ele também participou igualmente das mesmas coisas; afim de destruir pela sua morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio; e para livrar aqueles que, pelo temor da morte, estavam em escravidão toda a vida (Hb. II, 14 e 15).

Assim, está também infinitamente mais em harmonia com o plano da nossa libertação que Cristo fosse, como sempre a teologia católica o tem representado, inter mortos liber, um homem livre entre os mortos, capaz de se mover nos lugares sombrios da existência humana, circundado pela luz da divindade. Um homem que não conheceu o pecado e que se experimentou a morte foi para sepultá-la na abundância de sua própria vida. Assim, Cristo jamais falou das suas próprias humilhações sem mencionar a subsequente glorificação.

A ressurreição ao terceiro dia tornou-se para ele, podemos dizer, uma fórmula ritual: Em seguida tomou Jesus à parte os doze e lhes disse: Eis que vamos para Jerusalém, e será cumprido tudo o que está escrito pelos profetas relativo ao Filho do homem. Porque ele será entregue aos gentios, e será escarnecido, e açoitado e cuspido; e, depois de o açoitarem, o matarão, e ressuscitará ao terceiro dia. (S. Lc XVIII, 31-33).

O historiador da vida de Cristo que não levar em consideração esse aspecto do Evangelho faltará ao seu dever. Cristo insiste sobre a sua completa imunidade de pecado e da tirania desse mundo perverso. Basta esse fato para colocá-lo à parte e distingui-lo de todos os outros homens registrados na história. Não foi só aos cristãos das gerações futuras que Cristo deixou o cuidado de descobrir o grau da sua liberdade. Ele mesmo se servia de toda oportunidade para proclamar a sua incontestável independência e o poder de desfazer tudo que se lhe opusesse.

Ainda há outro aspecto da passagem  de Cristo por este mundo que nos mostra a superioridade que acabamos de descrever: é a sobriedade no uso do seu poder ao propagar o reino de Deus que ele veio estabelecer entre os homens. Tem sido isto o tema predileto dos pregadores cristãos de todos os tempos. Não é o fato de ser a Encarnação um locus communis que vá diminuir a sua grande importância e máximo interesse. Cristo tinha a sua hora e o seu modo de proceder na obra para a qual foi mandado pelo Pai, e nenhuma força seria capaz de o demover do seu caminho, ou de o induzir a adiantar o momento que havia escolhido: Estava próxima a festa dos Judeus, chamada dos Tabernáculos. Disseram-lhe, pois, seus irmãos: sai daqui e vai para a Judéia afim de que também os teus discípulos vejam as obras que fazes. Porque ninguém que deseja ser conhecido em público, faz coisa alguma em segredo; já que fazes estas coisas, faze-te conhecer do mundo. Porque nem mesmo os seus irmãos criam nele. Disse-lhes, pois, Jesus: ainda não chego
u o meu tempo; mas para vós é sempre tempo. O mundo não vos pode odiar, mas odeia-me a mim, porque faço ver que as suas obras são más. Ide vós para a esta festa; eu não vou a esta festa, porque não está ainda completo o meu tempo. (S. Jo, VII, 2-8).

Haverá, porventura, em parte alguma, narração semelhante à do Evangelho, quando se considera precisamente a grande cópia de testemunhos que provam ter esse herói, Cristo, a sua sorte nas próprias mãos, e que ninguém lhe pode tirar a vida, a não ser que ele mesmo o consinta? A atmosfera em que Jesus se move, tornou-se, como já o dissemos, a atmosfera do espírito cristão. Porquanto, assegurando a seus discípulos nada lhes poder realmente ser nocivo, entendia Jesus que esta certeza devia ser a norma permanente de vida de todos aqueles que adoram ao Pai: Disse-vos estas coisas para que tenhais paz em mim. Haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo (S. João, XVI, 33).

Do papa S. Leão poder-se-ia dizer que não dava tréguas aos seus ouvintes em lhes anunciar a liberdade que tinha Cristo de escolher o seu próprio modo de vida e a sua morte.

Haviam as heresias de Nestório e Eutíquio perturbado as consciências dos cristãos. Ara muitos, era problema inquietante o modo de encarar a tragédia de Cristo. Jesus foi condenado a uma terrível morte sem uma palavra de protesto. Não seria, pois, mais razoável não dar importância aos sofrimentos do Filho de Deus, tais como são descritos nos Evangelhos, e pensar que toda a Paixão teve apenas aparência exterior como pretendiam os Docetistas, próximos afins dos Eutiquianos?

O santo doutor lembra ao seu auditório romano que as humilhações de Cristo são o fruto do seu poder, pois ele quis ser fraco por nosso amor: “Há duas naturezas em Cristo – diz ele – mas uma só Pessoa. Há um só Senhor, o Filho de Deus, que é ao mesmo tempo Filho do homem. Ele tomou sobre si a forma servil por amor, sem estar sujeito a isto por nenhuma lei ou necessidade; visto que por ato do seu poder, se humilhou; por ato do seu poder, se tornou passível; por ato do seu poder, se tornou mortal. Afim de destruir a soberania do pecado e da morte, fez que a sua natureza humana fosse capaz de sofrer, sem que a sua natureza divina perdesse nada da sua glória”. (Serm. LXVI).

Não é pois faltar ao respeito chamar de suave mistério do humor cristão esse sentimento inato de superioridade a tudo que procura assustar o homem: A vós, pois, meus amigos, vos digo: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e depois nada mais podem fazer. Mas eu vos mostrarei a quem haveis de temer: temei aquele que, depois de matar, tem poder de lançar no inferno; sim, eu vos digo, temei este. Não se vendem cinco passarinhos por dois asses, e todavia nem um só deles está em esquecimento diante de Deus? E até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais pois; vós valeis mais que muitos passarinhos (S. Lc XII, 4-7).

Esta frase “meus amigos” justifica a nossa ousadia em empregar o termo humor. Está Cristo cercado por grande multidão de pessoas que podem desprezar a tribulação; não teria, porventura, aflorado aos lábios de Jesus um sorriso quando disse a seus discípulos, homens grandes e fortes, que valiam mais que muitos passarinhos?

(Retirado de uma tradução antiga em português. Já estamos providenciando uma nova tradução para publicação)

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