quarta-feira, 1 de julho de 2015

A Noite de São Bartolomeu - PARTE 2 - A religião católica não teve parte alguma no massacre de São Bartolomeu.

Por Mons. E. Cauly. Curso de Instrução Religiosa, Tomo IV.

Partes anteriores: Parte 1

II – A religião católica não teve parte alguma no massacre de São Bartolomeu.

1º A religião não estava diretamente interessada na questão; 2º nem a santa sé interveio, nem eclesiástico algum fazia parte do conselho real; 3º no massacre, não aparece participação alguma da Igreja; 4º a Igreja não aprovou o massacre.

É preciso não ter mais sentimento algum de justiça para acusar a religião católica dos males sofridos pelos Franceses durante as infelizes guerras que assolaram a França nos reinados dos três irmãos, Francisco II, Carlos IX e Henrique III, e ainda mais para lhe atribuir a resolução de Carlos IX.

Por certo, não queremos pretender que a Igreja se desinteressou da grande questão religiosa que agitou a França no século XVI, nem que ela ficou expectadora indiferente na luta que se travava debaixo de seus olhos.

Naquela época, a religião católica era a religião do Estado na França. Guarda do direito dos reis e dos povos, protetora nata da fé e da moral cristã, tinha por missão e dever de opor-se à Reforma e às suas intrigas, e assim o fez energicamente. E pois que a heresia protestante atacava com as armas na mão, a Igreja podia, por sua vez, invocar contra ela a força do braço secular. Ninguém pode lhe imputar a crime sua intervenção nas lutas religiosas daquela época agitada.

Mas importa muito determinar de que modo interveio. Será verdade, como pretenderam seus adversários, que a Igreja seja responsável por São Bartolomeu? Será verdade que por conselhos, manejos, tenha escandalosamente triunfado? Não, ela não interveio neste fato, nem como motivo, nem como conselho, nem como agente.

Antes de tudo, notemos que o verdadeiro motivo do massacre não foi a religião. Se, no principio da Reforma na França, a crença contribuíra por alguma coisa na luta entre a Liga e os calvinistas, a questão, em 1572, era mais política do que religiosa. Não se tratava mais de dogmas, porém de rebelião. Três revoltas anteriores, muitas cidades subtraídas à obediência real, cercos sustentados, tropas estrangeiras introduzidas no reino, quatro batalhas travadas contra o exército do rei, o duque de Guise assassinado: tais eram os motivos de queixa do rei e de sua mãe. Por isso, Carlos IX, depois de São Bartolomeu, escreveu a Schomberg, seu embaixador na Alemanha, falando dos protestantes: “Não me era mais possível aturá-los”.

Em parte alguma é invocado o motivo religioso, e vê-se, pelo contrário, que os editos reais recomendavam não molestar de modo algum os membros da religião reformada. O martirologio dos protestantes refere que os matadores diziam aos transeuntes, ao mostrar os cadáveres: “São eles que nos quiseram constranger para matar o rei!”.

Mas será possível admitir que a Santa Sé excitou o rei da França para exterminar os protestantes, sob pretexto de conservar ao catolicismo sua supremacia religiosa? Interveio a Igreja como conselho?

Voltaire, naturalmente copiado por numerosos historiadores, acusa disto São Pio V, um papa, um dominicano, portanto um inquisidor, e enfim um santo. Que há de verdadeiro nesta afirmação?

Carlos IX reinava na França havia já seis anos, quando subiu ao trono de São Pedro um papa de grande virtude: São Pio V. Teve este dois grandes fins: deter os progressos sempre crescentes da Reforma na Europa, e alistar os príncipes cristãos numa cruzada contra os Turcos. Para alcançar estes fins compreendia muito bem a necessidade que tinha do concurso da França, e por isso multiplicou os avisos e conselhos a Carlos IX, em vista de reduzir a heresia e assegurar ao rei socorros e alianças.

Desses conselhos faz a fé a correspondência pontifical. De conselhos sanguinários, porém, de maquinações pérfidas, de conluios urdidos na sombra, não há vestígio e nem prova. Além disso, sabe-se como a corte da França não fez caso dos conselhos do Papa e assinou a paz de São Germano (1570), que fazia dos protestantes um poder político no Estado.

Pio V morreu três meses antes do massacre de São Bartolomeu. Gregório XIII lhe sucedeu em 13 de maio de 1572, e seguiu a mesma norma de conduta que seu predecessor, procurando aproximar a Espanha da França, a fim de alcançar uma pacificação religiosa que permitiria dirigir os esforços comuns contra a ambição da Turquia. O historiador francês, H. Martin, que não se pode suspeitar de parcialidade em favor da Igreja, reconhece que Gregório XIII, “não só não favoreceu as intrigas que precederam São Bartolomeu, mas nem delas teve conhecimento”.

Pois do lado de Roma nenhum conselho de perseguição ou de represálias sangrentas. Mas o rei da França neste ponto teria sido influenciado pelo clero católico?

Nos conselhos reais, segundo a narrativa do duque de Anjou (mais tarde Henrique III), intervieram o rei, a rainha, a senhora de Nemours, o marechal de Tavannes, o duque de Nevers, Birague, de Retz etc., porém nenhum cardeal, nenhum bispo, nenhum sacerdote. Os Essais sur l’Histoire générale andam errados julgando que se trata dos cardeais de Biraguee e de Retz; são os marechais desses nomes que são designados. O cardeal de Birague revestiu a púrpura só em 1578 e o de Retz em 1587.

A religião católica que não interviera em nada nos conselhos, tão pouco aparece como agente no massacre. Falou-se em sacerdotes, em frades, de milícia inteira de burel, que teria andado em volta com os matadores e que, como diz Voltaire, como contam os romancistas, imolava suas vítimas com a espada numa das mãos e o crucifixo na outra. Falou-se daquelas famosas cruzes brancas que adornavam os chapéus dos assassinos, aqueles punhais bentos pelo cardeal Lorena...

Onde está a verdade? Em Paris, por uma especial proteção da Providência, não se vê nenhum sacerdote no massacre, a não ser João Rouillard, cônego da catedral e conselheiro do parlamento, que foi arrastado no lugar do massacre para dele ser vítima. Os escritores protestantes, na verdade, citam os nomes de alguns sacerdotes que tomaram parte nos massacres das províncias. Mas a ser isso verdade, a conduta repreensível deles, no final das contas, não pode ser imputada à Igreja.

Eis o que a imparcial e verídica história pôde afirmar: o clero católico, durante os massacres, desempenhou o papel que lhe competia. Em lugar de matar ou ferir, salva. Basta lembrar o nobre procedimento do bispo de Liseux, Hennuyer, que, por sua energia, salvou todos os protestantes de sua diocese.

O martiriológio dos protestantes, que não se pode lançar a suspeita de querer fazer o elogio dos católicos, cita muitos fatos como o precedente. “Em Tolosa, diz ele, os conventos serviram de asilo aos calvinistas; em Burgues, os católicos pacíficos salvaram alguns; em Romans, de sessenta que foram presos, conseguiram soltar quarenta, e dos mais só pereceram sete; em Troyes, em Bordéus, muitos foram igualmente salvos por sacerdotes.”

Em Paris, os huguenotes perseguidos acharam também protestores católicos, e em Nimes, esquecendo-se da Miguelada, houve corações muito generosos para defender os calvinistas de uma carnificina demais autorizada pelo exemplo, mas de nenhum modo permitido pela Religião.

Como, depois disso, acusar a Igreja e seus ministros de terem banhado as mãos no sangue dos hereges? Quanto as cruzes brancas, não passavam elas de um emblema, de um sinal. Além disso, o cardeal Carlos Lorena achava-se em Roma desde três meses antes do massacre. Como poderia então benzer os punhais destinados a um massacre que foi improvisado? Portanto, a cena introduzida por Chérnier no seu “Carlos IX”, e por Scribe nos seus “Huguenotes”, merece ser desterrada por entre as fábulas.

Mas, obsetar-se-á, se a Igreja não preparou a São Bartolomeu, se o papa não foi dela nem conselheiro nem cumplice, não se pode negar que Gregório XIII a tenha altamente aprovado e dela se tenha regozijado. É certo que em Roma, ao receber a notícia desse nefando golpe de Estado, renderam-se a Deus solenes ações de Graças; Gregório XIII foi em procissão da igreja São Marcos até a de São Luiz, indicou um jubileu, mandou cunhar medalhas comemorativas, e encomendou ao pintor Vasari, para o Vaticano, frescos destinados a perpetuar a lembrança de um acontecimento que a corte romana concebia uma grande alegria.

Que esses fatos materiais sejam verdadeiros, não o discutimos. Mas, para conhecer-lhes o verdadeiro caráter e julgar-lhes a significação, é necessário e justo lembrar suas circunstâncias e explicar seus motivos.

Depois de ter recebido a notícia dos acontecimentos de Paris, o sumo Pontífice foi em procissão da igreja de São Marcos à igreja de São Luiz dos franceses; ali mandou cantar um Te Deum de ação de graças, ordenou procissões, marcou um jubileu, mandou ou deixou cunhar uma medalha comemorativa do massacre. É ainda verdade que o pregador Muret fez um elogio público na presença do papa, e o pintor Vasari representou as diversas cenas desse fato em três quadros que ainda adornam uma das salas do Vaticano. Mas que pretendia celebrar a corte de Roma com essas demonstrações? Aquilo que lhe tinham revelado as notícias recebidas. Ora, continham o que se publicara por toda a parte na França e fora dela: que o rei e a família real acabavam de escapar ao maior perigo, sufocando uma nova conspiração tramada pelos huguenotes.

Neste ponto, não há dúvida possível; Carlos IX numa carta dirigida, em 24 de agosto, ao senhor de Ferralz, seu embaixador em Roma, contava resumidamente o fato, deixando ao senhor de Beauvillé, portador da missiva, o cuidado de dar mais pormenores ao embaixador e ao papa Gregório XIII. Os pormenores eram os que tinham sido mandados aos governadores das províncias.

A correspondência oficial de Salviati, núncio do papa em Paris, mostra que ele ignorava completamente os projetos da corte. Nos seus relatórios particulares, endereçados ao conselho de Estado, fala da rebelião geral dos protestantes que obrigou a corte da França a lançar mão de uma resolução extrema para se pôr a salvo do perigo. Um curiosíssimo documento, conservado no Vaticano, veio recentemente confirmar todas essas afirmações. É o resumo manuscrito (1) em latim, de um leito de justiça realizado no parlamento de Paris. Encontra-se aí um trecho que explica de um modo, que se poderia dizer definitivo, o massacre de São Bartolomeu: “Nesta augusta assembleia, o rei Carlos declarou que, graças a Deus, descobrira as ciladas que o almirante Gaspard de Coligny armava ao governo do rei, chegando ao ponto de ameaçar toda a família real com uma catástrofe e com morte, e que tendo tratado ele e a seus cúmplices como mereciam, queria que, no futuro, não se imputasse este fato a crime àueles que foram os fiéis ministros de uma tão justa vingança, visto que tinham procedido só por vontade, mandato e ordem do rei.”

Este mesmo documento relata que as execuções feitas em 24 de agosto não foram mais do que justas represálias contra as conspirações da facção protestante que devia, duas horas mais tarde, matar os membros da família real. Demonstra em segundo lugar que as execuções ordenadas por Carlos IX só assumiram o caráter de massacre pela intervenção do povo de Paris, irritado contra as facções. Menciona enfim a proibição expressa feita pelo rei ao mesmo povo de París, “de homicídios, combates, pilhagem e saque dos bens dos huguenotes”, sem a intervenção do parlamento e dos magistrados públicos.

Tais foram as notificações feitas ao Papa, donde resulta que Roma entendeu celebrar não o assassinato dos hereges, mas a exterminação dos rebeldes, a libertação do reino e, sem dúvida, como consequência ulterior, o fim de uma horrorosa guerra civil. O próprio Muret, na sua famosa pratica pronunciada em 23 do dezembro seguinte, não celebrava outra coisa.

As medalhas comemorativas, cunhadas em 1572, tendo a legenda: Ugonotorum strages, com a imagem de um anjo exterminador, armado de uma espada e perseguindo guerreiros, significavam a repressão de hereges rebeldes. As pinturas de Vasari não tinham outro sentido e deviam simplesmente transmitir à posteridade a memória de um fato que, aos olhos da corte de Roma, assumia um caráter providencial: a salvação da vida e do trono de Carlos IX, a vitória sobre a heresia, o fim das dissensões internas que desolavam a França.


Brantôme conta que, mais tarde, Gregório XIII, melhor informado sobre os massacres de Paris e das províncias, chorou amargamente: “Lamento, dizia ele, a morte de tantos inocentes que não deixaram de perecer de envolta com os culpados; é possível que a muito deles Deus tenha concedido a graça de se arrependerem” (Lefortier, La Saint-Barthéleby. Pode-se consultar também o estudo feito por Jorge Gándy na Revue des questions historiques, t. I, 1886).



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